Demolidor

Não, não, não...definitivamente não! Aguardado pelos (muitos) fãs do Homem Sem Medo, o filme Demolidor fracassa vergonhosamente nas telas. Tirando o Stevie Wonder e o próprio Demolidor, qualquer um pode ver o que faltou para transformar o filme num clássico: roteiro, direção e elenco. Aliás, o que não deixa de ser uma surpresa, pois o herói sempre fez parte da segunda divisão dos quadrinhos (exceção da fase Frank Miller e da Fase Kevin Smith).

O começo da trama resume num enorme flashback a origem do herói e sua relação com o pai, um pugilista veterano e fracassado, que forçava o jovem Matt Murdock (Scott Terra) a estudar para não precisar usar os punhos para viver. Só que o jovem Matt acaba descobrindo que o pai, além de pugilista, é uma espécie de "cobrador ostensivo" de um chefão da máfia local. Qualquer semelhança com "Rocky - Um Lutador" não é mera coincidência. Desesperado, Matt acaba fugindo e sofre um acidente com lixo radioativo, que o deixa cego mas amplia seus outros sentidos a um nível muito acima do normal, além de dar ao guri uma espécie de radar, o que acabava compensando, e com vantagens, a falta de visão. Matt Murdock começa a treinar artes marciais e acaba dando uma surra num bando que atazanava sua vida.

Enquanto isso, seu pai começa a ganhar luta após luta, e a crescer no ranking dos pugilistas. Na hora de enfrentar o campeão, o mesmo chefão que mandava ele bater em quem lhe devia dinheiro, manda Jack Murdock perder, e diz que as lutas que ele havia ganho eram arranjadas (não sei por quê me lembrei do Rocky III agora). Mas Jack, com o filho na platéia, derrota seu adversário e torna-se o campeão de pesos pesados com 42 anos. Como prêmio, o chefão manda um jagunço mata-lo na saída do ginásio. Jack toma uma surra e morre com um soco (nem o Maguila conseguiria essa proeza). Anos depois, Matt (já vivido por Ben Affleck) torna-se um advogado que só defende pessoas honestas (só em filme mesmo) e, à noite, coloca uma roupa de demônio e sai às ruas para surrar criminosos.

Aqui cabe um aparte para falar de Affleck. Talvez o único quesito que aproxima ele do herói é que ele também não se enxerga. Ele é até parecido com o Matt Murdock dos quadrinhos, mas não tem a menor aptidão física para encarnar o Demolidor. Talvez por isso as cenas de ação do filme são escuras em com cortes muito rápidos, com a intenção de tornar menos constrangedor para o ator explicar a sua dureza e falta de rapidez nos movimentos. A cena em que ele se desvia de uma "estrela ninja" mostra uma desenvoltura digna de um Jonh Candy.

O filme se transforma aos poucos num samba-do-ceguinho-doido, cheio de cenas mal explicadas e mal arranjadas. O diretor Mark Steven Johnson, que diz-se ser fã do Homem Sem Medo desde os áureos tempos em que Frank Miller escreveu as melhores histórias da personagem, quis mostrar de tudo um pouco e acabou se perdendo. A religiosidade do herói é explorada à exaustão mas não é explicada em nenhum momento. Ninguém entende porquê ele está sempre numa igreja. Outro exemplo é a cena em que o Demolidor conhece Elektra, de uma babaquice vergonhosa. Ela aparece num bar, aparentemente pra comprar uma Sukita, e é seguida por Matt Murdock, que pelo visto não tem espelho em casa (até porque seria inútil) e fica perguntando o nome dela. Em dois minutos ele fica cego de paixão. Mas o que os olhos não vêem o coração não sente, e ela resiste àquela cantada à la "galã de gafieira". Só faltou ele puxar o cabelo dela. Depois, a luta "de mentirinha" dos dois num parquinho de crianças é simplesmente constrangedora. Só um cego para achar que aquela cena tem algum tipo de verossimilhança.

E aqui cabe outro aparte para falar de Elektra. Jennifer Gardner é realmente uma gracinha. Uma coisinha momosa. E até é boa atriz (sem trocadilho). Mas NÃO é a Elektra. A assassina fria de Frank Miller acaba se tornando uma patricinha digna de uma coluna do Gasparotto, daquelas que saem dos bailes de debutantes direto pra Disney World aos 15 anos. Seria perfeita para encarnar uma Gwen Stacy, mas não a Elektra. Como em terra de cego que tem um olho é Rei do Crime, entra então em cena Michael Clarke Duncan (que podia ser melhor explorado), vivendo o Kingpim. E presenciamos aí mais uma vez a estupidez de alguns diretores e/ou roteiristas, que resolvem misturar a origem do herói com o principal vilão. Lembram-se do primeiro filme do Batman, em que o Coringa era o real assassino dos pais de Bruce Wayne? Pois é.

Nos quadrinhos, O Rei do Crime é um gordo branco e careca que comanda tudo o que acontece em termos de tráfico, contrabando e assassinato em Nova York. É uma espécie de aprendiz de Fernandinho Beira Mar. No filme ele é um gordo negão e careca, que contrata o cruel assassino Mercenário (Collin Farrel, que passa o tempo todo grunhindo) para dar cabo (no mau sentido) da doce Elektra Nachios e seu pai, por que este último resolveu abandonar os "negócios". Como o Demolidor é cego mas não é bobo, ele não iria deixar o Mercenário acabar com seu parquinho de diversões (afinal, no filme, a Elektra só serve pra isso mesmo). Interessante notar que, depois que o Mercenário ataca pela primeira vez, o Demolidor age com se já o conhecesse. Quer dizer que, além de possuir um radar dentro da cabeça, o Homem Sem Medo ainda é uma espécie de Mãe Dinah?

Ainda aparecem no filme Foggy Nelson (John Favreau), sócio e melhor amigo de Matt, um loser de carteirinha que serviria como o contraponto cômico da história, mas que não tem graça nenhuma, Karen Page, que nos quadrinhos é peça fundamental na vida do herói, mas no filme é tão importante quanto um cinzeiro numa motocicleta, e o jornalista metido Bem Urich, que parece um jornalista recém saído do Projeto Caras Duras da RBS. O jeito que ele descobre a identidade secreta do Demolidor faz o Régis Rosing parecer um ás do jornalismo.

Há especulações de que o segundo filme do Demolidor deve utilizar como roteiro a saga "A Queda de Murdock", escrita em 1986 por Frank Miller e que é um clássico, um dos melhores momentos da trajetória do herói. O final do filme deixa um gancho para essa história que pode ser aproveitado com facilidade. Só que três probleminhas devem ser resolvidos. Primeiro: o gancho deixado que poderia levar à saga é muito, mas muito mais fraca que a original. Segundo: a participação e a importância de Karen Page, mesmo sem o gancho original, deve ser aumentada, e o salto de tempo deve ser grande. Terceiro: na saga original tem uma (importante) participação do Capitão América (argh). Ou seja, o Demolidor vai ter de rezar muito pra não virar uma bomba. Mas, como diria o ceguinho esperançoso, "veremos".

Jarbas Schier

(Daredevil EUA, 2003), Direção: Mark Steven Johnson, Roteiro: Brian Helgeland, Mark Steven, Johnson, Elenco: Ben Affleck, Michael Clarke Duncan, Jennifer Garner, Colin Farrell, Jon Favreau, Joe Pantoliano, David Keith, Coolio, Ellen Pompeo, Kevin Smith, Stan Lee, Erick Avari, Scott Terra